Nos países sem grande tradição democrática encara-se com normalidade que os políticos possam decidir como vamos escrever as palavras. Alguns linguistas, incapazes de fazer valer as suas modernices linguísticas pela via orgânica da influência dos seus dicionários, gramáticas e livros (que não escrevem), ajuntam-se, ajoelham-se, rezam e convencem o poder político a mudar por força de lei o modo como escrevemos. O poder político vai na conversa, com as ilusões políticas do costume, que ninguém se deu ao trabalho de estudar cuidadosamente: hoje em dia, usa-se a ilusão de que a língua vai ter maior implantação no mundo, vamos unificar as diferentes ortografias da língua, em vigor no Brasil e em Portugal (os países africanos de língua portuguesa seguem a ortografia de Portugal). No passado, para eliminar o "ph", usavam-se outras ilusões: era por causa do "ph", dizia-se, que o nosso ensino era tão mau e o nível cultural tão baixo. Décadas depois já não há "ph", mas o ensino não melhorou.
Há três aspectos importantes a ter em conta.
Em primeiro lugar, a pouca-vergonha que é o estado legislar sobre a língua. A língua devia ser deixada entregue a si mesma, como acontece em países com sólidas tradições democráticas. O inglês é, em termos práticos, a língua académica, científica e comercial internacional — mas ninguém legisla sobre esta língua e as ortografias do Reino Unido e dos Estados Unidos são diferentes, para não falar dos restantes países de expressão inglesa. Mas nos nossos dois países, Portugal e Brasil, as bestas de políticos que temos bem poderiam fazer uma lei para deixarmos de beber café com leite ao pequeno-almoço, que a intelectualidade aceitaria isso com naturalidade. Como dizia o Ega, isto é uma choldra. Ah, os brasileiros não aceitariam isso — mas unicamente porque no Brasil não se sabe o que é o pequeno-almoço, pois usam a expressão "café da manhã" (e até "traduzem" o Eça, para o leitor não se dar ao incómodo de ir aos excelentes dicionários brasileiros — o Houaiss, o Aurélio ou o Michaelis). O que nos conduz ao segundo ponto.
Em segundo lugar, as ilusões políticas não passam disso mesmo: ilusões. O acordo não vai unir as línguas, nem há qualquer vantagem em unir as línguas. Não vai unir as línguas porque a diferença mais importante entre o português de Portugal e do Brasil não é a ortografia mas a gramática e o conjunto de expressões usadas. No Brasil, as pessoas em geral não sabem o que é o pequeno-almoço, e em Portugal o café da manhã é apenas um café que se toma de manhã e não o pequeno-almoço, que pode ou não conter café; no Brasil, um sítio é uma quinta grande, mas em Portugal é apenas um lugar qualquer. E não há qualquer vantagem em unir a ortografia das línguas, dado que não há qualquer união ortográfica entre os EUA, por exemplo, e o Reino Unido, mas os livros publicados num país são geralmente publicados no outro e vice-versa, sobretudo os académicos. A Blackwell, a Cambridge, a Oxford — algumas das mais importantes editoras académicas — publicam geralmente os seus livros simultaneamente nos dois países, apesar das diferentes ortografias. Não há um só editor académico que faça isso em Portugal e no Brasil, com ou sem acordo. Compreende-se que os editores brasileiros se estejam nas tintas para o mercado português, de apenas dois ou três milhões de leitores, num país que tem muitíssimos mais leitores do que isso apenas em S. Paulo e no Rio, para não falar de outras cidades gigantescas nem do resto do país, com as suas 106 universidades federais (sem contar por isso com as estaduais nem com as privadas). Portanto, não há realmente razões políticas para fazer um acordo ortográfico.
Em terceiro lugar, devemos compreender o que está realmente em causa: uma simbiose entre linguistas que querem ficar na história e fazer currículo, e um estado autoritário que gosta de interferir arbitrariamente na vida dos cidadãos. Como os linguistas têm a incapacidade de se impor pela força das suas ideias linguísticas, impõem politicamente as suas teorias ortográficas preferidas. E o poder político agradece, porque o mais arcaico instrumento político é a interferência arbitrária do poder político na vida das pessoas. Hoje não podemos ler Eça tal como Eça escreveu, nem Pessoa tal como Pessoa escreveu. Mas os ingleses lêem Byron tal como Byron escreveu e lêem Dickens tal como Dickens escreveu. E se não lêem Hobbes tal como Hobbes escreveu, não foi por via de qualquer legislação, mas por força da evolução orgânica da língua — porque os autores de dicionários, gramáticas e obras eruditas foram mudando gradualmente o modo de escrever certas palavras, assim como certas estruturas gramaticais.
Entre o orwellianismo dos nossos políticos, a incompetência dos linguistas próximos do poder e as ilusões dos comentadores — que parecem ingenuamente pensar que há razões políticas para tais acordos que não a mera interferência arbitrária na vida das pessoas — a realidade gritante é esta: não há soluções legislativas para a falta de cooperação académica e cultural entre os nossos povos, não há solução ortográfica que resolva as diferenças linguísticas profundas entre os nossos países, nem há qualquer vantagem em fazer tal coisa. Com ou sem acordo, tudo vai continuar como antes, mas pior. Tal como tudo ficou igual, mas pior, quando deixámos de escrever "possìvelmente" e passámos a escrever "possivelmente", e quando deixámos de escrever "philosophia" e passámos a escrever "filosofia": continuámos a ser um dos povos europeus possivelmente mais incultos e a filosofia continuou a fazer-se no estrangeiro.
Tuesday, December 04, 2007
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment