Monday, March 07, 2011

Os Engenhosos das Palavras

José de Sousa e a sua gente criaram uma espécie de ideolecto. São proverbiais os casos da mentira que passou a inverdade e do conhecimento que se subdividiu em formal e informal. Estilisticamente é também de assinalar o uso da negação como uma forma de confirmação – já se sabe que dos negócios da PT aos impostos aquilo que o Governo diz que não vai acontecer é precisamente aquilo que já aconteceu – e destaca-se o recurso aos adjectivos como se fossem metralha: os caluniadores e os pessimistas deram lugar aos bota-abaixistas e aos tremendistas. Quando a realidade provou que tudo aquilo que os bota-abaixistas e os tremendistas tinham vaticinado pecava pelo optimismo, surgiram os antipatrióticos. Não demora para que cheguem os traidores.Mas é no dia-a-dia que este “falejar” mais se tem entranhado, colando-se-nos como se fosse uma espécie de algodão doce: desde que se diga uma vez “cidadania”, duas “modernidade”, três ou quatro “progresso” e “inclusão”, tudo se explica. No limite, perde-se a noção do ridículo, o que é um sinal mais que óbvio do estado de alienação a que chegámos. Por exemplo, como é possível que não desatemos a rir (ou a chorar!) quando se lê que o Governo resolveu construir “uma esquadra do século XXI” no Terreiro do Paço? Tendo em conta que esta decisão foi tomada em 2008, de que século haveria de ser a futura esquadra senão do XXI? A única forma de não o ser é concebê-la como um cenário de um filme de época e organizá-la à luz do que era habitual no século passado. (Valha a verdade que para viajarmos até às esquadras dos primórdios do século passado não era preciso tanto trabalho: bastava retirar os computadores de algumas delas e caíamos nos idos dos anos 30 do século XX.) Ou então arrastava-se durante 90 anos a sua construção – e aí a esquadra seria do século XXII mas ainda nos moldes do XXI.
Dirão que no meio da crise em que estamos afundados nada disto é muito relevante. Não é verdade. Foi com palavreado deste que o país se deleitou e que chegámos a um dos momentos mais vergonhosos da nossa História. Era como se o anunciado fosse realidade. Agora que este efeito mágico das palavras se desfaz só nos sobra a caricatura. Uma das vítimas deste desmoronar do reino do anúncio é o ministro das Obras Públicas, que continua a andar por aí a anunciar obras de milhões sem perceber que quem o ouve e vê na verdade não o ouve nem o vê porque está a fazer contas sobre como pagar o que deve. Se em 2008, quando a “esquadra do século XXI” foi anunciada, tivéssemos tentado perceber o que estava para lá destes artifícios das palavras não estaríamos hoje certamente em tão triste estado.
* do PÚBLICO

No comments: