Tuesday, April 15, 2008

Esquerda tontinha, direita cegueta



I
É frequente que se atribuam os males do ensino à influência duma esquerda tontinha, herdeira de Rousseau, ingénua na sua concepção do ser humano, avessa à disciplina e ao esforço, relativista no plano ético e propensa a dissociar a noção de autoridade da noção de poder. Esta esquerda tontinha encara os jovens como naturalmente "bons", o que dispensa qualquer espécie de coacção no processo educativo, e naturalmente "criativos", o que lhes permite construir os seus próprios "saberes" sem necessidade, por parte do professor, de qualquer "dirigismo" na transmissão de um património intelectual ou cultural. Não reconhece qualquer diferenciação entre um aluno e outro em termos de inteligência ou talento, de modo que as discrepâncias em matéria de desempenho só se podem dever às diferentes formas de segregação social, à falta de empenho do professor ou à deficiente aplicação das técnicas pedagógicas promotoras da igualdade. Do mesmo modo que não há hierarquização de capacidades entre os alunos, também não há hierarquização entre aluno e professor, uma vez que todos os "saberes" se equivalem e nenhum deles confere autoridade especial ao seu detentor. Deste modo, não podendo o professor construir a sua autoridade sobre o seu estatuto de "mais sabedor", nem podendo baseá-la num poder de coacção delegado pelo Estado, resta-lhe apoiá-la no seu próprio carisma, natural ou adquirido - o qual, sendo decerto uma perna indispensável do tripé, tem a enorme desvantagem de ser apenas uma.
II.
Atribuir responsabilidades à esquerda tontinha é assim perfeitamente justificado, mas incide apenas sobre uma das faces da moeda. Igual responsabilidade tem uma certa direita que mergulha as suas raízes no ancestral anti-intelectualismo português e hoje vê na educação e no ensino um mero instrumento de formação profissional. Perante uma qualquer área do conhecimento a pergunta quase instintiva desta direita é "para que serve"; e não lhe ocorre que a cultura, o conhecimento, o pensamento crítico podem ser fins em si mesmos; nem que, a servirem para alguma finalidade, esta finalidade pode ser não só a economia e o trabalho, mas qualquer outra dimensão da vida. Esta direita vê na escola uma fábrica em que entram crianças e de onde saem recursos humanos - como se fosse possível prever, à data em que uma criança de seis anos entra para a escola, as competências profissionais específicas de que vai precisar passados quinze ou vinte anos. A décadas de distância, a capacidade de compor um soneto ou de ler a Ilíada no original pode ter consequências económicas mais vastas e mais ramificadas do que o domínio duma qualquer técnica profissional de banda estreita que por essa altura já estará mais do que desactualizada.A esquerda tontinha e a direita de vistas curtas e excessivamente pragmática que determinam as políticas educativas têm em comum o horror ao passado, que consideram inútil e irrelevante. Só lhes interessa o futuro, que uns e outros têm a ilusão de conhecer e do qual se consideram donos. Nem uns nem outros compreendem a absoluta impossibilidade de ensinar a uma criança o mundo em que ela há-de viver: o mais que podemos fazer, se formos realistas, dedicados e competentes, é ensinar-lhe o mundo tal como é hoje e tal como o passado o moldou. A mudança do presente para o futuro não pode ser ensinada: o que nos prepara para ela é o conhecimento crítico das mudanças que deram origem ao presente. Tão utópica é a esquerda tontinha como a direita pragmática. Uma situa-se para lá do humano, no reino da perfeição; outra para cá do humano, no reino da técnica; e deste modo ambas recusam uma educação centrada no homem e à medida do homem como a que preconizava Wilhelm von Humboldt.
A coligação esquizofrénica entre a esquerda tontinha e a direita cegueta é desconfortável para ambas as partes, mas não deixa por isso de ser uma coligação que bem ou mal vai funcionando. Opera na tecno-burocracia educativa, opera nas escolas, opera nos currículos e nos programas. Opera na profusão legislativa, onde os preâmbulos tendem a ser de esquerda e os articulados a ser de direita; e não sei se não operará também na idiossincrasia da actual ministra da educação. A metáfora de Dr. Jekyll e Mr. Hyde só não se aplica aqui porque, enquanto a personagem do romance tinha um lado nobre, as personalidades desavindas da ministra são ambas perniciosas e vis.

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