«Desde o princípio que Sócrates viveu em guerra com os jornalistas. Para ele, a informação sobre o Governo tinha de ser pouca e calculada. Quanto menos fosse e quanto mais calculada, menos daria alimentação e oportunidade à crítica. Isto exigia evidentemente que uma autoridade central - o gabinete do próprio Sócrates - decidisse o que o público devia ou não saber, como e por quem. Os ministros não deviam falar quando achavam necessário e só porque achavam necessário. Era preciso um plano de propaganda ou, se quiserem, de "apresentação", que obrigasse toda a gente. Claro que esse plano nunca verdadeiramente passou de um projecto ou de um desejo. Mas também é verdade que durante anos houve uma espécie de barreira entre o Governo e os jornalistas. De qualquer maneira, com o tempo as críticas vieram. E Sócrates começou a exercer represálias sobre os críticos pelo velho e desastroso método do boicote. Se uma televisão ou um jornal por qualquer motivo o ofendiam ou, supunha ele, o prejudicavam, Sócrates fazia o possível (e o impossível) por não se aperceber da sua maléfica existência: recusava entrevistas, cortava as relações com os directores, não os convidava para viagens de natureza oficial e por aí fora. Mesmo os ministros (quase sempre em apuros para salvar a sua própria pele) se prestavam relutantemente a pôr o pé nessas cavernas de iniquidade e de intriga. Se a relação entre o Governo e os jornalistas se tornou numa relação "pessoal" e "obsessiva", a culpa não é dos jornalistas. É de quem primeiro se mostrou "pessoal" e "obsessivo". Claro que as coisas pioraram com o escrutínio da vida de Sócrates. Sucede que se esperava que Sócrates não ignorasse duas coisas. Para começar, que, em última análise, nenhuma vida suporta escrutínio. E, depois, que a dele seria inevitavelmente vista à lupa. Um primeiro-ministro normal negava, sem paixão, o que valesse a pena negar e deixava o resto aos tribunais. Sócrates resolveu partir em campanha contra o mundo. Desde apresentar-se como vítima de uma conspiração obscura e quase universal a processar uns tantos jornalistas (6? 7? 8?), não poupou um erro. E produziu o efeito previsível: ninguém acreditou em conspiração alguma e os jornalistas acabaram por o processar a ele. Pior ainda: terça-feira conseguiu transformar Manuela Moura Guedes no grande problema do Governo. Com o país no estado em que está.»
Vasco Pulido Valente, Público
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