O principal problema da Justiça em Portugal são as leis. São muitas e muito más e muito inúteis. Legisla-se demais e legisla-se mal.
A boa Justiça é feita com poucas e boas leis, interpretadas e aplicadas por bons juristas que saibam com razão, bom senso e sentido de equidade subsumir os factos da vida à natureza geral e abstracta das normas.
Desgraçadamente, eliminado, por superlativo e supérfluo, o estudo do direito romano das escolas jurídicas, substituído pelas funcionais burocracias de gabinete, a tendência (europeia, mais do que portuguesa, que se limitou, como sempre, a importar a moda) foi a de querer abarcar na previsão legal os mais ínfimos aspectos da vida, como se toda a realidade, todo o universo de situações juridicamente relevantes, tivesse que estar concretamente contido numa hipótese normativa. Do modo como devem ser fabricados os isqueiros, às indicações que obrigatoriamente devem conter os rótulos das embalagens de milho para pombos, tudo, rigorosamente tudo, passou a ser objecto de uma lei, de uma directiva, de um regulamento.
Do mesmo passo, por simples decorrência lógica, o intérprete e aplicador da lei viu-se funcionalizado e reduzido à condição de mero fiscal da realidade, sem outra função que não a de decretar a natureza irreal ou punível de uma pretensão não exaustivamente descrita numa norma.
Eficácia no manuseamento de bases de dados gigantescas, é tudo o que hoje se pede ao juiz. Não, bom senso, inteligência ou sentido de Justiça.
Mas, apesar de todos os esforços, a realidade (sobretudo nos imaginosos países mediterrânicos) teima em não caber toda na lei. Por isso, o legislador, aflito, tentando ser maior que o mundo, legisla cada vez mais. Tapa cada lacuna do sistema com uma nova lei; e com uma nova lei tapa a nova lacuna aberta pela lei anterior, destinada a tapar uma lacuna.
O sistema embala. E o legislador legisla... e legisla... e legisla...não à medida dos problemas, mas à medida dos factos e da ordem do dia na comunicação social. Tenta-se deter o mundo por decreto-lei. Como se tentam deter os carros com proibições de excessos de velocidade. Como se a realidade e a velocidade pudessem ser sustidas por ordem do poder legislativo.
Regula-se o segredo de Justiça, não por causa do seu sentido ou função, mas por causa do processo Casa Pia; altera-se o regime de supervisão da actividade bancária, não porque alguém tenha pensado melhor nele, mas porque houve um escândalo no BCP; reformula-se a lei de protecção de menores, não para criar uma melhor, mas porque uns míudos assaltaram numas bombas de gasolina a actriz Lídia Franco, do mundo dos famosos.
Acaba a lei e começa a medida avulsa. Acaba a norma geral e abstracta e começa a decisão individual e concreta, à medida da gritaria e do poder de cada um fazer ouvir própria voz: um ministro suspende e desautoriza em directo na televisão a decisão da comissão que negou a reforma a uma doente; abre-se um inquérito e altera-se um sistema de urgências, porque passa nos telejornais o registo de conversas telefónicos surrealistas entre agentes do 112 e os bombeiros de Alijó...
Tudo é incerto e mera função do noticiário do dia.
Não há trabalhos preparatórios, não há estudos, não há ensaios nem testes às consequências da entrada em vigor de uma lei nova. Há leis-medida, feitas à pressa e a martelo, que o próprio legislador assume no respectivo preâmbulo deverem ser imediatamente revistas, confessando que as criou sem pensar e apenas para acudir a uma moda ou a um caso concreto do momento.
Neste contexto, qualquer esforço de interpretação é inútil. Não há nem pode haver uniformização de critérios aplicativos. Diante de expressões legislativas equívocas, sem lógica, nem coerência, nem gramática, cada um faz o que quer e como quer e quem necessita tem que submeter-se ao poder de facto de quem decide.
Por todo o lado, quando hoje se pergunta como é que se faz este registo, ou se formula este pedido, ou se averigua e requer este direito, a resposta é invariavelmente a mesma: «ai isso, cada um faz de forma diferente; o melhor é perguntar como é que eles fazem lá na Conservatória, na Repartição, ou no Tribunal.»
Acabou a Justiça e passou a valer apenas a selva e a lei do que grita mais alto. Não vamos sair daí, enquanto o legislador não parar de legislar
Saturday, February 23, 2008
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