Monday, March 24, 2008

Ser professor em Portugal- uma opinião



Texto de António Maduro
O sistema educativo português tem servido de palco a múltiplas experiências, consoante o perfil dos protagonistas que assumem a liderança ministerial. Cada qual mexe e remexe a seu bel-prazer. São improvisações peregrinas de qualquer iluminado, importações pré-cozinhadas de modelos educativos de outras realidades sociais e culturais, menus pedagógicos e utópicos dos mais variados tipos e atributos. E como a coisa naturalmente não funciona, o legislador descarrega incessantemente leis, decretos, circulares, avisos, que anulam, que alteram, que esclarecem, e sobretudo que baralham e entorpecem os actores que tentam sobreviver no terreno. O importante para cada ministro é deixar marca pessoal, anulando irreversivelmente o precedente ou desfigurando-o. Neste país, pasme-se, qualquer um pode ser ministro da educação e a sua acção, por mais nefasta que seja, jamais será avaliada e o seu titular sancionado. Os insucessos resultantes destas políticas erráticas eram, ciclicamente, utilizados como arma de arremesso entre os partidos do poder. Mas isso são águas passadas. Descobriu-se, agora, que é mais fácil denegrir o elo mais fraco, ou seja, os professores. Os professores são agora culpados de todas as falhas do sistema, do atraso estrutural do país, das neuroses colectivas, da desestruturação familiar, do desemprego, da falência do Estado social, da decadência da classe média e, provavelmente, dos desaires da selecção. Nada é remetido para a profunda incompetência dos dirigentes políticos e de sucessivos ministérios que reforçam dia após dia o centralismo, a burocracia e o caos, negando a individualidade, a cultura e a inovação endógena às Escolas. A Escola Pública sobreviveu à massificação, à inflação do número dos seus pares, ao atravessamento de muitos que, sem o serem, fizeram de professores para tapar os buracos do sistema, à complexidade crescente das exigências sociais. Agora pede-se que sirva de depósito de crianças e adolescentes e que os seus professores façam o papel de animadores, de psicólogos, de assistentes sociais, de pais e mães, de distribuidores de afectos, de missionários e sacerdotes e ainda habilitem os jovens para a vida profissional e prosseguimento de estudos... O esforço tem sido grande e dificilmente reconhecido. Quer-se que a Escola recupere um atraso centenar como um milagre de alminhas. Basta lembrar que em 1910 cerca de 80% da população era analfabeta (taxa maior de escolaridade tinham os netos dos antigos escravos americanos) e que à beira do 25 de Abril de 1974, esta percentagem atingia ainda os 35%. Também na entrada da revolução dos cravos o número de licenciados ficava-se pelos míseros 4%, enquanto a França contava com 40%. Sociedade, cultura e mentalidade não se alavancam de um momento para o outro, daí a demagogia feroz das comparações. Então comparemos a estatura dos nossos políticos, com a dos seus homólogos franceses, alemães e até espanhóis e toca a rir pessoal, que a galhofa faz bem à alma lusa. É certo que os professores não estão isentos de culpas. Aceitaram e até embarcaram nas ridículas modas pedagógicas, não questionaram firme e publicamente o desvario disciplinar, o severo e preocupante desajustamento curricular, a absurda hora lectiva. Resignaram-se em demasia, vencidos pela hierarquia ou pela comodidade de não fazer mais ondas, quando o mar encapelado já torna tão difícil a vida da tripulação. Mas os tempos agora estão mais conturbados. Abriu a caça ao professor, apodado de corporativo (o que é risível), de retrógado e de incapaz. Esta campanha panfletária e populista, bem urdida por sinal, tem contado com o suporte dos média enfeudados ao poder e de alguns serventuários fabricantes de opinião. Como pãezinhos multiplicaram-se as invectivas, as inverdades, os malabarismos. Sabemos bem que a opinião de uns tantos adopta estrategicamente a conveniência clubística e que o discurso seria outro se os seus dilectos adversários fossem os autores das messiânicas reformas. Mas isto é a outra história da miséria das consciências. A mensagem triunfante é a do sucesso estatístico para a reclassificação na listagem europeia. Para quê a qualidade, o conhecimento, a autonomia reflexiva, a formação do cidadão para o exercício da democracia política, social e cultural. Cabe ao professor pactuar com o sistema, baixar o nível da aprendizagem, a fim de assegurar a circulação sem escolhos. Entra-se no paraíso do diploma, invertendo a razão de vida do próprio sistema. Para obviar a resistências incómodas, o professor passa a ver a sua progressão profissional vinculada à transição dos alunos. Este sistema perverso, desqualificador das aprendizagens, a ir avante, vai assassinar a Escola Pública e levar à migração dos filhos das classes médias altas, que se irão, inevitavelmente furtar ao miserabilismo e degredo da futura escola pública. Retorna-se à racionalidade mecânica do industrialismo aplicado a pessoas e não a objectos. A última descoberta reside na avaliação. Os professores não querem ser avaliados, bramam as carpideiras do poder. Vamos, então, desmontar o lego. Acontece que os professores constituem uma das classes profissionais com maiores habilitações. Para ingressar no sistema têm de deter uma licenciatura e de se submeter a um estágio profissional. Muitos não ficaram por estes requisitos primevos e, a suas expensas, tiraram pós-graduações, mestrados e até doutoramentos, frequentaram voluntária e obrigatoriamente um rol inúmero de acções de formação de natureza científica, didáctica e pedagógica. Um dos parâmetros essenciais à progressão na carreira docente baseava-se na realização com sucesso destes cursos. Mais ainda, os professores sempre cumpriram a avaliação estipulada pelo Ministério. Mas os professores, como uma das classes mais expostas, são avaliados pelo sucesso/insucesso das suas aprendizagens, pelo conhecimento dos seus alunos, pelos resultados nos exames, pela interacção que estabelecem com a turma, pela relação com a comunidade... As Escolas e com elas os docentes têm sofrido regulares avaliações pela Inspecção Geral de Ensino e com resultados reputados de meritórios. Curiosamente é este governo que faz da avaliação dos professores o seu quase exclusivo programa político quem retira os dias de formação antigamente consignados no seu Estatuto profissional e, assim, impede a frequência de colóquios e conferências da especialidade disciplinar; que inviabiliza as licenças sabáticas para realização de mestrados e doutoramentos... Como diria o português, não bate a bota com a perdigota. Mas porque recusam afinal os professores este modelo de avaliação? Como primeiro argumento, realço a decepção. Nas sociedades e organizações complexas, os modelos para aferir a competência e fiabilidade têm de ser debatidos com os actores e não impostos. Chama-se o primado do diálogo. Exige-se ainda que os avaliadores possuam mais experiência e habilitações profissionais que os avaliados, critério que de modo algum foi assegurado com o inaudito concurso para professor titular (que pelos pontos mais se assemelhou a um concurso televisivo, pois nada aferiu de valias científicas, técnicas e pedagógicas). Pede-se também que a avaliação assuma um carácter formativo e não uma mera incursão punitiva para poupar tostões ao cofre do Estado cerceando carreiras e expectativas. Pede-se ainda que seja exequível nos procedimentos e não arraste a Escola e os professores para a papelada estéril, desviando estes profissionais do direito e dever de ministrar boas aulas, de preparar as suas lições, de ensinar. Venha a avaliação, mas com engenho, com igualdade, com seriedade!
António Maduro (professor)

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